Avançámos muito.
Eu nada fiz para esse avanço, aconteceu antes de que eu nascera, mas sou um grande beneficiário. E até me aproprio desse esforço e digo "avançámos". Enquanto povo.
Avançámos muito. Não sei como era viver na ditadura. Ouvi contar mas não o senti. E já nasci longe dessa prisão. Até o meu irmão mais velho, que nasceu 10 anos antes de mim, só viveu alguns meses de ditadura. Os meus pais contam-me episódios, poucos e tingidos por tudo o que aconteceu desde o 25/4 até agora, e sei, através da minha avó, alguns episódios pidescos da vida do meu avô que ajudava o PCP.
Num aparte (talvez não tanto) digo até que é difícil perceber bem o que foi viver na ditadura porque persiste como um fantasma, como ter medo de falar na morte, ter medo de que ela apareça de repente. Calculo que viver tantos anos com medo tenha este efeito.
Mas avançámos. Muito. E a minha vida é vivida em liberdade. Uma liberdade da qual nem sequer tenho uma consciência profunda, tal como não tenho consciência profunda do que é ter 2 braços porque nunca não os tive, tal como não tenho consciência profunda do que é não ter febre para além do dia em que volto aos 36,5º C do costume.
Vivo em liberdade e já está. Tenho a vida que quero, digo o que quero, voto em quem quero ou se quero, tenho acesso a todo o tipo de cultura, vivo noutro país por querer e não por obrigação, escrevo para todo o mundo ler sem medo do me possa passar. E não consigo ir muito além destas "banalidades" da liberdade, ainda que saiba que ela me possibilita tudo o que faço.
E em parte até é bom que assim seja. Não conhecer o custo da liberdade permite-me ser mais exigente. Não estar infinitamente agradecido a cada direito que me toca permite-me querer mais, fazer por mais, para mim e para os outros. Até para os que vêm cada avanço neste sentido como um bónus que provavelmente nem merecem. Porque é necessário habitar esta liberdade. Dar graças por ela mas não ficar por aí. Dar graças por ela fazendo com que seja cada vez mais ampla, mais dinâmica, mais presente, mais verdadeira, inquestionável.
E tenho às vezes a sensação de que nos ficámos pelo caminho. De que não somos suficientemente conscientes de que a liberdade nos dá o direito e o dever de querer mais e de querer melhor. Para mim e para os outros. Tenho a sensação de que querer mais significa ser arrogante, pretensioso, abusado, grosseiro, pouco modesto. De que fazer por mim é ser egoísta e desprezar os demais. De que deixámos de arriscar. De que encontrámos um cantinho seguro e cómodo e não vale a pena ir mais além. De que não vale a pena lutar nem a favor nem contra o que me oprime. É uma pena que demore 4 horas a chegar ao emprego, é uma chatice que a cidade esteja sempre sempre suja, é injusto que não tenha água canalizada em casa, que merda! até, que tenha tanta dificuldade em encontrar emprego.
Avançámos muito! Saímos de um ditadura conseguindo não entrar noutra, aproveitámos a oportunidade europeia, assumimos e até desprezamos o direito ao voto, o direito a uma opinião formal e oficial sobre o estado da pátria. Mas ainda não vivemos a liberdade. Ainda não sabemos exigir democracia de manhã, à tarde e à noite. Ainda não sabemos reivindicar com clareza, força e determinação. Não sabemos questionar e criticar activamente. Vivemos com um fosso demasiado gordo entre riqueza e pobreza, não só de posses, de qualidade e acesso à educação, à saúde, à habitação, à mobilidade, ao emprego, à cultura, mas também no mais básico e quotidiano da nossa vida. E parece que não o vemos. Ou que não nos toca.
Reflectimos, intelectualizamos e criticamos bastante bem, mas não agimos na maioria das vezes. Como se não fossem concretas as coisas que nos afectam. Como se fosse impossível procurar e realizar novas formas de actuar.
Acredito muito no valor português. Acredito que juntos podemos continuar a avançar. Que juntos podemos e devemos conseguir um poder político verdadeiramente democrático, que valorize a força de cada um, que acredite na pátria, que veja no povo uma oportunidade e não um inimigo que é mais seguro manter na ignorância. Acredito que juntos podemos descobrir e aproveitar as oportunidades que o mundo cada vez mais unido nos proporciona.
A nossa História não começa em 1974. A nossa longa História é reflexo de um espírito lutador, valente, não conformista, curioso e sem medo do risco e do desconhecido. O nosso povo vive valores de aceitação e integração, de ajuda e colaboração, de procura e descoberta. O nossa longa História espelha o nosso inspirador Povo.
Voltemos então a confiar em nós. No nosso espírito de vontade. Nos nossos pais, nos nossos irmãos, nos nossos amigos, nos nossos desconhecidos. Desde o miúdo que me atende na caixa do supermercado à senhora que vai ao meu lado no autocarro. Naqueles que me têm a seu cargo e naqueles sobre os quais tenho responsabilidade. Na nossa capacidade para transformar Portugal num país que amamos por aquilo que é, não por aquilo que foi ou pode vir a ser.
Confiemos naquilo que melhor conhecemos: o nosso valor enquanto povo!
Deixemos de celebrar o sonho de Abril um dia por ano e vivâmo-lo todos os dias. Em todos os momentos.
Começando agora!